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Ditadura fiscal evolui para terrorismo tributário

O mais trágico disso é que muito se lutou no país para eliminar a ditadura militar.

Autor: Raul HaidarFonte: Consultor Jurídico

Tornam-se cada vez mais frequentes servidores do fisco promoverem a aplicação de penalidades absolutamente ilegais, que contrariam normas expressas da Constituição Federal, ignorarem solenemente as normas complementares do CTN e desprezarem a jurisprudência de todos os tribunais do país, inclusive súmulas do Supremo Tribunal Federal.

O mais trágico disso é que muito se lutou no país para eliminar a ditadura militar. Jamais se poderia imaginar que agora nos submetemos todos não mais apenas a uma ditadura de fiscais, mas a verdadeiros atos de terrorismo praticados por agentes fazendários que, munidos de computadores e canetas, destroem mais do que canhões e metralhadoras.

Ainda que procurem remédio junto ao Judiciário e ainda que dele obtenham resposta imediata, as vítimas não conseguem evitar prejuízos e muitas vezes perdem sua vida econômica, sendo nesse aspecto condenados à morte. Quando conseguem reverter o ato de terrorismo, a injustiça, a ilegalidade, o abuso que sofreram, já é tarde demais.

Os que rasgaram a Constituição, ignoraram o CTN, inventaram atos juridicamente nulos, desprezaram anos e anos de jurisprudência do STJ, estes continuam dando ordens, recebendo salários que o povo lhes paga e gozando de todas as benesses que lhes são patrocinadas pelo conjunto de vítimas.

Vamos a alguns exemplos:

Em dezembro passado, a fiscalização do ISS em São Paulo inventou uma Instrução Normativa que supostamente lhe permite impedir que contribuinte em débito emita a nota fiscal eletrônica. Tal instrução não vale nada, por contrariar o artigo 5º da CF. Apesar disso uma autoridade fiscal chegou a dizer que quem fosse à Justiça estaria defendendo causa perdida. Até agora todos os que procuraram o Judiciário obtiveram liminar, ainda que em segunda instância. Gastaram tempo e dinheiro com isso, sem chance de recuperá-los. Devem acionar o município por isso.

Neste caso a questão é: havia necessidade dessa violência, dessa demonstração de ignorância jurídica? Claro que não! O ISS é hoje o principal imposto do município em termos de arrecadação e vem crescendo constantemente. Não havia, como não há, indícios de que a inadimplência pudesse comprometer a arrecadação.

E mais: o contribuinte que não paga pode e deve ser acionado judicialmente, por meio da lei de execuções fiscais, extremamente rigorosa e eficiente, que permite penhora até mesmo de contas bancárias. Portanto, a medida é inútil e desagradável.

O fato de que muitos contribuintes correram a pagar ou parcelar suas dívidas não é relevante. Num estado democrático de direito os fins não justificam os meios. Tais meios são violentos, ilegais, injustos. Aliás, há fortes indícios de infração ao artigo 316 parágrafo 1º do Código Penal nesses procedimentos (impedir emissão de NF).

Não foi para isso que nós votamos num prefeito, mas para exercermos a cidadania. Assim, a autoridade subordinada ao prefeito não tinha necessidade de inventar essa monstruosidade, a menos que deseje em ano eleitoral prejudicar politicamente o chefe.

Já no estado criou-se outra aberração jurídica, em vigor desde 2006, que é a portaria CAT-95 que tenta regular a suspensão, cassação e nulidade de inscrição do contribuinte na fazenda estadual. Tal ato normativo ultrapassa os limites da legalidade em vários pontos, o primeiro deles relacionado com o artigo 5º da CF em diversos incisos.

Já ocorreu de fiscais estaduais abrirem procedimento (do qual o contribuinte não foi intimado formalmente) e bloquearem a inscrição da empresa comercial ao constatar três graves irregularidades: a) a empresa não possuía qualquer estoque de mercadorias; b) possuía apenas dois funcionários no escritório e c) o proprietário não estava no local em duas oportunidades em que lá foram os agentes.

O contexto é ridículo. Não se confunde empresa comercial com depósito. Uma empresa pode não possuir estoque em determinado momento, sem que isso seja irregular. Essa mesma empresa não tem obrigação de manter número elevado de funcionários e seu proprietário deve ter outras coisas a fazer além de esperar a visita dos fiscais. Simples assim. Nenhum contribuinte é subordinado ou empregado de qualquer fiscal.

Há uma máxima em direito que tem a ver com isso tudo: o cidadão tem o direito de fazer o que quiser, desde que a lei não o proíba, mas o servidor público só pode fazer o que a lei o autorize. Lei é lei, não essas porcarias administrativas redigidas por leigos.

Na esfera federal não é diferente. Aliás, parece que o mau exemplo vem de cima, vez que colocado em prática há mais tempo.

Consta que existe na Receita Federal um certo Grupo de Inteligência. Pelo que já vimos, isso é uma ofensa aos não integrantes de grupo, presumidamente não inteligentes ou burros como se dizia antigamente.

Pois bem, esse tal GI seria o encarregado de trabalhos especiais, seja lá o que isso possa significar. Aí é que está o perigo.

Já houve um caso bastante rumoroso (vazou para a imprensa apesar do sigilo legal) onde fiscais resolveram arbitrar preço de veículos importados com base em preços obtidos em lojas varejistas do país de origem. Ninguém precisa ser muito inteligente para perceber que o preço de qualquer coisa no varejo é sempre maior do que preço dessa mesma coisa que tenha sido adquirida por contrato objeto de volumosa quantidade. E que na exportação não incidem os impostos internos, o que reduz o preço da mercadoria exportada.

Nesse caso o contribuinte defendeu-se e obteve julgamento favorável já na primeira instância administrativa. Foi uma vitória? Claro que não! Afinal teve que pagar os honorários de seus advogados e durante os dois anos em que discutiu o assunto ficou sem crédito, sem poder produzir, o que acabou com sua empresa. Os fiscais que fizeram aquelas besteiras todas já estão devidamente aposentados, recebendo seus confortáveis proventos (que todos pagamos) e ao que sei pelo menos um deles desfila por aí de consultor. Certamente não de consultor de inteligência.

Todas estas considerações são necessárias para que possamos adquirir o hábito de receber com muitas reservas as denúncias de que o fisco descobriu um foco de sonegação, encontrou fraudadores ou interditou empresa que praticava ilícito. Muitas vezes o fisco está a agir de forma insana.

Qualquer atuação fazendária que se faça ao arrepio da lei deve ser rechaçada.

Com esses terroristas fazendários na adianta dialogo, senão através das medidas judiciais. E como eles costumam tentar retardar o cumprimento da decisão, que se peticione pelo indiciamento da desobediência.

Aquelas portarias, instruções, ordens de serviço, etc., que são atos administrativos, já foram muito bem analisados por Rui Barbosa :

“Essa presunpção de terem, de ordinário, razão contra o resto do mundo,nenhuma lei a reconhece à Fazenda, ao Governo ou ao Estado. Antes, se admissível fosse qualquer presumpção, havia de ser em sentido contrário. Pois essas entidades são as mais irresponsáveis, as que mais abundam em meios de corromper, as que exercem as perseguições,administrativas, políticas e policiais, as que, demitindo funcionários indemissíveis, rasgando contratos solenes, consumando lesões de toda a ordem (por não serem os perpetradores de taes atentados os que por eles pagam), acumulam, continuadamente sobre o Tesouro Público, terríveis responsabilidades.” (Oração aos Moços, Rio, 1932).

 

Raul Haidar é advogado tributarista, ex-presidente do Tribunal de Ética e Disciplina da OAB-SP e integrante do Conselho Editorial da revista ConJur.